Com a iminência da Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) se tornar o único regramento sobre o tema, com aplicação obrigatória a partir de 01/04/2023, revogando-se integralmente a Lei 8.666/1993, a Lei 10.520/2002 (pregão), e demais correlatas, o assunto do momento é a necessidade e importância de sua regulamentação pelos entes federativos.
Em que pese a grande expectativa para que o período de transição inicialmente estabelecido em 02 anos, seja estendido (considerando-se que 81% dos municípios não estão preparados para o novo regime, segundo pesquisas formalizadas em diversas importantes redes sociais), o fato é que chegará, cedo ou tarde, a hora de implementarmos definitivamente as regras da Lei nº 14.133/21.
E como se sabe, a Nova Lei de Licitações estabelece normas gerais para a Administração Pública e abrange a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, além das autarquias e fundações dos referidos entes federativos, e prevê, ainda, que vários dos procedimentos necessários para sua aplicação deverão ser regulamentados.
Embora o artigo 187 da Nova Lei de Licitações estabeleça expressamente que, para a execução do novo regime, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União, certo é que cada ente deverá promover as adequações normativas necessárias à correta operacionalização da lei, de acordo com a estrutura e realidade própria.
A Nova Lei de Licitações prevê a regulamentação de inúmeros temas e a grande dúvida é a sua auto aplicabilidade quando, sabidamente não será possível editar todas as normas referidas no texto geral a tempo da revogação da Lei 8.666/1993.
Alguns órgãos, contrariamente à União, optaram pela regulamentação geral da norma e muitos vêm sendo criticados, porquanto acabam por “copiar” a regra geral, sem adentrar em aspectos de ordem local e chegando a remeter alguns temas para novos regulamentos, ou seja, regulamento geral da regra geral e permanência de normatização interna em muitos pontos.
Outra crítica importante quanto à regulamentação geral, impera no fato de que, com o avançar das discussões e a formação de precedentes, a norma geral acaba por ter que ser alterada diversas vezes em vários pontos.
Regulamentação geral ou individual (por tema), o certo é que a implantação da Nova Lei de Licitações irá perpetuar por longo tempo após o encerramento da vigência da Lei 8.666/1993.
Mas a discussão de hoje será:
As Câmaras Municipais precisam regulamentar a Nova Lei de Licitações?
O artigo 20 da Lei 14.133/2021, prescreve: “os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.” (§ 1º). Por sua vez, o artigo 8º, como tantos outros, preceitua que “as regras relativas à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos de que trata esta Lei serão estabelecidas em regulamento, (…).” (§ 3º).
Na esfera federal, o Executivo vem editando normas regulamentares com aplicação restrita ao âmbito da Administração Pública Federal “direta e indireta”. O mesmo tem ocorrido nas demais esferas, mas a falta de um “Programa de Transição” que estabeleça regras claras (e também para a Administração Indireta), tem, inclusive, originado diversas dúvidas junto aos órgãos que detêm, autonomia orçamentária, financeira, patrimonial e administrativa nos municípios.
E como toda boa discussão jurídica, há quem defenda que em razão da menção expressa quanto aos órgãos responsáveis pela edição do regulamento a exemplo do artigo 20, § 1º (citado acima), o entendimento se estende de igual forma nos demais dispositivos que não expressam a autonomia do legislativo, por exemplo, para a regulamentação interna dos demais pontos.
Contrariamente, os defensores da não autonomia do legislativo para regulamentação integral da Nova Lei de Licitações, entendem que às Câmaras deverão aguardar a regulamentação dos municípios, sem autonomia normativa quanto aos temas de regulamentação interna.
O Congresso, STF, e outros órgãos autônomos, devem observar os Decretos do Executivo Federal? Nos Estados, o TJ, Assembleia Legislativa, MP, TCE, devem se submeter às normas do Governo do Estado?
E, no caso dos Municípios, a Câmara Municipal está sujeita à regulamentação da Prefeitura?
Nos termos do ordenamento jurídico vigente, pensamos que a resposta seja: não!
Isso porque, o artigo 2º da Constituição da República enfatiza que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Trata-se do consagrado princípio da separação dos poderes.
A separação dos poderes, em prestígio ao princípio da simetria, deve ser observada, também, no âmbito Estadual (Executivo, Legislativo e Judiciário) e Municipal (Executivo e Legislativo).
Dito isso, afirma-se que os poderes, autônomos e independentes, têm competência exclusiva para regulamentar os procedimentos previstos na Nova Lei de Licitações, sem prejuízo da possibilidade de adotarem os regulamentos editados pela União, como já mencionamos.
No âmbito municipal, a Lei Orgânica é o diploma legal que disciplina as atribuições e competências dos Poderes Executivo e Legislativo (art. 29, CF/88).
Toda Lei Orgânica, portanto, deve ser interpretada à luz dos princípios da separação dos poderes e simetria com os preceitos da Constituição da República; e, por conseguinte, conferem ao Executivo e Legislativo total autonomia e independência em relação ao exercício de suas atribuições, bem como à sua estrutura administrativa-financeira.
Para fins exemplificativos, destacamos dispositivos da Lei Orgânica de Campo Grande/MS, que assim estabelecem:
Art. 2º São poderes do Município, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo e o Executivo.
Art. 47. A resolução destina-se a regular matéria político-administrativa da Câmara, de sua competência exclusiva, relativa a sua economia interna, não dependendo de sanção ou veto do Prefeito Municipal.
Destarte, é competência privativa da Câmara Municipal, em razão da sua autonomia financeira e administrativa, executar as despesas inerentes à sua manutenção e funcionamento, cabendo-lhe, desse modo, a autorização de licitações e contratações. E, nesse sentido, é sua atribuição, igualmente, disciplinar as rotinas e procedimentos para tal finalidade.
Logo, ressai, de forma incontestável, que a regulamentação da Nova Lei de Licitações no âmbito do Legislativo, incumbe à Câmara Municipal, órgão dotado de autonomia e independência quanto a sua organização, funcionamento e direção.
Ao concluirmos de tal forma, observamos o fato de as inúmeras normas editadas pelas Prefeituras (Leis e/ou Decretos) ou pelas Câmaras Municipais (Resoluções ou Decretos Legislativos), serem unânimes ao consignar, expressamente, o limite de sua abrangência ao “âmbito do Executivo Municipal” ou ao “âmbito da Câmara Municipal” e/ou “âmbito da Câmara de Vereadores”.
Nesse sentido, torna-se urgente que as Câmaras Municipais que ainda nem iniciaram o seu programa de transição, fiados que estão nas assessorias que as operacionalizam, por vezes, na fase interna das contratações, entendam que não poderão terceirizar a estas, a condução da fase externa das novas contratações, que requerem, ainda na dispensa, a oportunidade de oferecimento de propostas em sessão pública.
De outro norte, é certo que o legislativo precisa conhecer os procedimentos que reclamam a devida regulamentação e providenciar a imediata implementação pensando na sua realidade e estrutura, inclusive (e especialmente) de pessoal, sob pena de, com a vigência da Nova Lei de Licitações, em abril de 2023 ou mais para frente, se for o caso de prorrogação da Lei 8.666/1993, se encontrarem sem o amparo normativo que observe as peculiaridades e características de sua estrutura organizacional e administrativa.
Por fim, vale registrar que quanto aos órgãos da Administração Indireta, devem iniciar estudo interno das normas, e contato permanente à partir de comissão interna própria, junto a equipe de transição do respectivo município, para o aproveitamento da norma geral editada pelo ente respectivo, porém, adaptando modelos e critérios normativos (para a dispensa do ETP, por exemplo), à sua realidade e estrutura (que difere significativamente da estrutura da prefeitura).
Vale registrar ainda, que cada órgão autônomo na operacionalização das compras públicas, deve se preocupar com a construção do seu catálogo de padronização próprio, bem como do Plano de Contratação Anual e outros importantes instrumentos, que lhe oportunizará iniciar e concluir suas contratações de forma independente e autônoma, adquirindo seus produtos e serviços a partir do seu planejamento próprio e de forma a atender as suas necessidades internas.
Outras questões polêmicas envolvem o tema ora posto, a exemplo de: E se as prefeituras não editarem normas, os institutos de previdência, por exemplo, ficarão a mercê da inoperância ante a inércia do ente a quem incumbe a normatização?
E uma vez editadas as normas e os modelos da prefeitura (ETPs, TRs Editais, etc), fica o órgão da Administração Indireta sujeita a eles, assim como aos critérios normativos que estabeleçam, por exemplo, o recebimento provisório e definitivo? Mas com estruturas diminutas e equipes pequenas e com valores menores de contratação, seria pertinente a adoção da norma da prefeitura em número, gênero e grau?
Estas questões ficarão para um próximo artigo, em breve no meu blog www.opiniaosimoneamorim.com.br